quinta-feira, agosto 31, 2006



O baque latejava. Ainda não se acostumara com os pés novos. Quando pediu um pé de coelho, não imaginava que seu almejado souvenir viria a substituir seu próprio membro. Achou que o lagarto mágico da floresta molhada o teria pregado uma peça. Enfim, seu pé doía. Relutante entre os pés de menino e a pata do animal, topou na pedra que repousava.
Paulo era menino sonhador. Podia não ser qualquer coisa, mas era sonhador. Almejava sempre suas fantasias e guardava bem sua memória. Perambulava pelo parque quase sempre longe dos brinquedos. Nem sabiam por que insistia em aparecer por lá se não brincava. Às vezes brincava, mas não sempre. Mas sempre estava por lá. Às vezes desenhava na areia, às vezes passava horas pulando ininterruptamente. Saltava tão forte tentando alcançar o céu. Quando não, estava sentado; sempre alijado. Ninguém o queria. Alguns o admiravam. Ninguém o queria.
Seu Joaquim espalhou que ele nasceu no mato. Como não sabiam dele, incorporaram. Paulinho Mateiro, era como o chamavam. As crianças aprenderam a esquecê-lo. No parque, o viam apenas como cenário. Mas naquele dia, não. Todos se espantaram de seu pé de coelho. Ele deu seu dia aos pensamentos, consternado pela frustração de seu desejo mal realizado. Tentava, mesmo garoto, acreditar que havia algo divino naquilo. As pessoas não entendiam. Seu Carlos da mercearia disse que era castigo da matinta-pereira. Paulinho passou a tarde lá. Com as mãos apoiadas para trás, estendeu as pernas de menino, como se quisesse exibir ao sol seu pé novo. Enquanto o sol fugia dele, ele remexia suas bolinhas de gude. Ele as tinha desde sempre. Três. Ou melhor, duas. O lagarto pediu uma de suas bolas para realizar seu desejo. Paulinho acreditava em poucas coisas. Uma delas eram suas bolinhas. Carregava-as como única fonte de sua vitalidade, de seus sonhos. As crianças só o aceitavam se as usasse como bolinhas de gude. Não queriam que falasse do quanto eram especiais para ele e dos feitiços que já o tinha feito. Queriam que as usasse para bater e ganhar outras. Só, nada mais. Há um tempo ele tinha desistido de provar a prodigiosidade delas. Guardava uma em cada bolso na esperança de um dia, enfim usá-las com seu propósito sublime.
Quando passou na casa Tia Jacira, quem lhe cedia favores de higiene e alimentação, aquela tarde, ela fingiu não ter percebido seu novo pisante. Colocou em suas mãos sempre limpas, apesar de viver na rua, um pão com um pedaço de ovo. Sua refeição favorita. Ele agradeceu com um sorriso especial, como que aludisse à única felicidade num dia de intempéries. Pela primeira vez se encheu de carinho e passou a mão e sua cabeça. Ela nunca fizera isso antes. Paulinho escondeu-se no descaso, como se não tivesse notado a investida.
Naquela mesma noite, como todas as noites durante 20 anos, Tia Jacira foi ao bingo. Foi, mais uma vez, escondendo sua vontade de ganhar na desculpa por ocupação. Quase desmaia, ao ver sua cartela com apenas um espaço vazio, sem feijão. Nem bem terminou de ouvir o sete, do longo “vinte e sete” que dona Maroca pronunciara, já não via mais nada. Dadas por uma pitada de inveja, suas colegas do vilarejo alvejavam seu rosto com tapas e a sacudiam enquanto se perguntavam se chamariam o Barbosa, seu marido. Ela acordou. Pegou o singelo prêmio, uma televisão – a primeira em cores da vila, e foi pra casa. Enquanto tentava deixar o sono tomar conta de seu corpo, seus pensamentos turbilhavam. Em vinte anos, o que neste dia a fizera ganhar? Não era Nossa Senhora. Nesses vinte anos, todos os dias ela incluíra nas orações o pedido pelo bingo. No que haveria de mais óbvio: Paulinho. Ou mais especificamente: o novo pé de coelho de Paulinho. O único fato incomum que pudera justificar seu ganho.
No outro dia, Tia Jacira já o esperava pela manhã com o pão e o ovo. Sentiu-se estranhamente quisto. Tomou seu café com a mesma concentração de sempre aos olhos sedentos da nobre senhora.
- Onde você o conseguiu?
- O que?
- O pé de coelho?
- No mato.
- Que mato?
- Acolá – apontou na direção da igreja.
Atrás da igreja estava a parte da floresta desconhecida. Mato-frio como chamavam. Para assassinar qualquer ânsia aventureira na senhora.
No mesmo dia, o fato. Ganhara de novo no Bingo. O Barbosa não se continha em felicidade ao saber que poderia usar um telefone a hora que quisesse. Tia Jacira, não continha sua insistência em pensar em Paulinho. Em meio ao falatório, ela irrompe a balbucitância para confessar seu tapasse. “O Paulinho”, disse ela. Deu-se a explicar o que se açucedera e a fizesse ganhar. O Paulinho era um amuleto. Paulinho pé de coelho.
Já pela manhã, não entendia tamanho prestígio. Três, lhe ofereceram o desjejum. Não sabia pôr em palavras sua lealdade à Tia Jacira e não se pôs a explicar muita coisa. Foi andando. Na casa da Tia Jacira, contou o acontecido. Ela deu de ombros. Ele voltou para suas andanças ao redor da vila. Toda ela orbitava em redor da praça a qual resguardava o pequeno parque. Na verdade, o parque resumia-se a um banco de areia onde se depositava um velho balanço para a ocupação vespertina das crianças. Começava, de um lado, na padaria e acabava no limite entre a benção sacralizada da igreja e insalubridade pavorosa da floresta inóspita; ali onde as crianças não entram e os homens só passam com permissão do curupira.
Passou todos os seus minutos desejando ser desejado. Àquele dia, quanto mais era visto mais se sentia olhado. E por mais que o quisesse, sentia-se incomodado. A cada inversão de pés apertava a boca dos bolsos. Fazia de sua velha bermuda um cofre resguardando seu tesouro. Excêntrico demais, aquilo parecia ameaçador. Precisava proteger o que tinha de mágico, o que alimentava seu sonho.
Figura ilustre, usou de sua imponência no trato com o garoto. Um berro: “Paulinho”! Chamou o padre, pedindo que o ajudasse a carregar um dos bancos da igreja à marcenaria. Não explicou, apenas ordenou outorgando a impossibilidade de questionamento, digna de um enviado de Deus. O garoto obedeceu resignado, apesar de não acreditar naquela coisa toda de igreja. Dito e feito. Mais uma vez, enquanto Paulinho dormia, os membros eméritos da quase aldeia comemoravam uma réplica monumental de Nossa Senhora a ser enviada pela paróquia da capital. Mais um feito de sorte. Ou da suposta sorte que causara Paulinho com seu pé de coelho.
Ao longo dos meses, o garoto tornou-se um amuleto da cidade. Todos queriam fazer uso de suas proezas. De certo modo, enfim, Paulinho foi algo maior que a negligência habitual. Estava sempre entre os homens e ocupado com os afazeres alheios. Não reconhecia bem, mas no fundo sentia-se minimamente útil e funcional. Enfim acalentado de sua solidão. Incluía-se nos momentos sociais e deixou de ser parte do cenário para compor os desejos da pequena cidadela.Uma moça grávida, dois empregos na capital, plantações que dão frutos e um cavalo que misteriosamente surge na floresta. Tudo começou a acontecer. Até o espanhol que há um tempo havia se mudado para lá, na volta de sua última viagem consegue, enfim, uma máquina tipográfica que há muito tentava trazer a cidade. A cidade se ocupava e se equipava a passos cavalares às custas do menino.
Antes permanentemente diletante, sonhador e tranqüilo, Paulinho era, desde o pé de coelho, ocupado. Tinha compromissos e não podia se dar o luxo que voltar-se a sentar no banco de areia esperando o sol tocar a floresta. O único vínculo que mantinha com sua fruição lírica anterior eram suas bolinhas de gude, sempre resguardadas. Paulinho as achara na floresta. Caíram em sua cabeça num dia chuvoso. A primeira gota da chuva do ano. As três primeiras lágrimas do choro de Deus. Era sua força. Ele sabia de algo maior por isso. Ele acreditava ser filho do que regia o universo e mantinha sempre consigo isso. A possibilidade de provar-se parte de divina num corpo de homem-menino. Era o símbolo das possibilidades e do amor que trazia latente. As pessoas não o entendiam. Ele era parte do mundo, uma raiz da floresta como um galho qualquer. Tinha em si, a porta para alcançar o maior. E os outros só o viam como menino.
À esta altura, enquanto os outros contavam as novas tentativas, Paulinho sentia-se apenas um menino. Deixara para trás seu valor para caber no convívio. Encaixaram-no num papel e o menino pobre se deixara levar. Aos poucos, até as crianças passam a cumprimentá-lo. Dentre eles, Lúcia, a única filha do espanhol tipográfico, tornou-se a mais próxima. Passou a dividir com ela boa parte dos momentos que lhe sobravam do trabalho comunitário. Há um tempo, além de brincar, conversavam. Falavam de qualquer coisa enquanto contavam as nuvens, ou procuravam acerolas no quintal de dona Josefa. Ela foi a única que chegou a acompanhá-lo floresta adentro à procura de mangas que ele afirmava só ter lá. Ele confiava nela. Já fazia questão de sua presença. Ela parecia sentir do mesmo modo. E o admirava. Sim, tinha-o como ícone de coragem e alguém a depositar suas esperanças.
O garoto, já não se sentia mais menino. E deixara para trás seus sonhos. Com as pessoas, ninguém o tratava com a devida atenção. Ninguém dava ouvidos aos seus questionamentos. “Porquês” infantis respondidos com descaso e impaciência. Quando ouvidos. Chegou a perguntar a Lúcia se seu pai fazia do mesmo modo. Se ela tinha a quem recorrer ao invés de, apesar de menino, ser aquele a quem todos recorrem.
Num dia qualquer, escondeu-se o dia todo na floresta. Não visitou nem Tia Jacira. Não comeu. Passou o dia sentado entre as raízes de uma sumaumeira. Dormiu. Passou a noite. Por entre a copa das árvores, olhava as estrelas no intervalo entre sonolência e vigília. Amanheceu. Continuou lá. Já quase próximo à hora do almoço, ele escuta os galhos movimentarem em sua direção. De longe, reconheceu Lúcia. Ela chegou com um ar preocupado. Olhou-o e perguntou se estava bem. Ele apenas a olhava. Não dizia absolutamente nada. Só lembrava de como era e de como deveria ser. Ela nota seu semblante e pergunta: “O que aconteceu? Porque sua pata está sangrando?”. Dera-se conta de que, no limite entre o humano e o animal, seu membro estava sangrando. Estava tão embebido de suas elucubrações que estava anestesiado e não sentiu a enfermidade.
Ele olhou para ela. Estendeu a mão, pedido a dela. Ela entregou relutante. Ele a colocou em cima da ferida. Olhou-a novamente. Ela estava com medo e desconfortável com o sangue. Ele olha com ar de gratidão e coloca a mão no bolso. Tira seu segredo. Retira sua fonte de vida. E oferece ao apreço da menina. Ela chega a recebê-lo em sua mão branca e delicada. Quando ousou fechar a mão, uma lágrima correu ao longo do seu rosto ao lado esquerdo. Ela coloca a bola de gude parada na barriga do menino. Quando solta o objeto, outra lágrima correu, agora do outro olho direito. Com a mesma mão, ela as enxuga; levanta olhando para o horizonte não mais para o menino; limpa a mão suja de sangue no vestido amarelo de estampa florida; vira-se e vai aos passos de volta à cidade. O menino se mantém parado. Deixa a bola cair no chão em função de sua respiração. Sentia-se pouco merecedor da respiração que mantinha. Na verdade, esteve estático lá, ainda por mais horas. Não era possível computar seus pensamentos, quem dirá medir suas emoções naquele momento. Quanto o sol ameaçara esconder-se, ele, enfim deixou cair uma lágrima. Antes que a escuridão tomasse conta de tudo, levantou-se e correu para o coração da floresta desolado. Entre três árvores, no local onde encontrara suas bolinhas, ajoelhou-se e começou a cavar dado às lágrimas. Jogou a última das bolinhas que restavam. Enquanto tapava o buraco, sentia seu coração arder como uma lança que perfurasse seu tronco. Antes de terminar de cobri-la, caiu deitado de bruços, com o rosto na grama. Sua solidão só diminuía pela companhia da chuva que então viera coroar sua morte. Ficou lá e não levantou mais. Nunca mais. Seu ferimento sangrava e seu corpo definhava. Putrefou-se em cima de sua semente.
Fora esquecido, inclusive pela menina. Só não pela chuva que vinha sempre ao mesmo lugar. Vinha trazer possibilidade de vida para uma árvore. Ela nascera no gérmen do sonho do menino. Crescera e encorpara-se imponente entre as outras três. Ela nunca deu frutos. Apenas residia lá. Para todo o sempre dali em diante.

quinta-feira, agosto 24, 2006


Como nasce o dia.

Ontem tirei o dia pra pensar no que me dei conta anteontem. No que aconteceu anteontem... Quantas pessoas se perdem no vai e vem da vida, e como não nos damos conta. Descobri o segredo do universo. Uma moça cabocla quase me tira fora parte do coração. Sem saber ao certo o que sacudira minha alegria em êxtase, fui saber dela. Por que era especial sendo apenas uma mulher. É... Tenho que confessar que não era apenas uma mulher? A segui no horário do almoço com a fome apenas de sanar a curiosidade que me atordoava. Ela mora na saída da cidade. Caminhava por entre os becos que já não sabia identificar quais - eram de piçarra e barro - até chegar a um cerca aleijada e maltratada. Feita de paus amarrados com arame, parecia ter passado da terceira idade e encostavam-se umas nas outras apoiando os braços no ombro da estaca ao lado. Na entrada da casa adormecia uma pequena ponte para transpor os limites do córrego entristecido de poucas águas. A vi bater a porta. Nem reparei que tinha porta até vê-la bater de costas. Também de paus. Na verdade, a casa toda parecia ter emergido dos dejetos não utilizados dos membros das árvores. Uma casa que parecia não ter cômodos senão a casa. Enfim... Dei-me de coragem e entrei. Quando pus os pés na ponte o chão se moveu. As gramas levantaram-se do sono, puxaram suas pequenas raízes e correram em direção a lateral do quase jardim. Na verdade, se privaram do meu pisar com uma maestria, deixando um caminho para os passos que supostamente seguiriam. Já sem a mesma coragem de antes, continuei. Pensei em bater. Se o fizesse, perderia os vestígios aventureiros que ainda adormeciam em mim. Puxei a porta - abrira para fora - e entrei. Ela estava cantando. Um cômodo, me certifiquei. Nenhuma janela; uma lâmpada incandescente preza à um bocal enforcado em um fio elétrico que saía do teto sem forro. Ela balançava como se a casa quisesse me hipnotizar. Parecia viva. Olhei pela porta do outro lado; dava à uma área aberta. Atravessei claudicante e espiei guarnecido pela parede. Tive a impressão de tê-la vista nua. Depois de algumas piscadas, notei o que fazia. Rodeada de gatos amarelos - exceto um, que era vermelho - mexia um caldeirão tão grande quanto o carro do meu pai. Movia-se como uma fada, e cantava com uma doçura, como se cozinhasse o alimento da vida. Tive vontade de estar lá pra sempre. O sol iluminava, mas não aquecia. E a moça mexia, mexia, mexia. Por um instante parou. Fiquei com e medo que tivesse me notado lá. Ela pegou um dos gatos e mergulhou no caldeirão. Quando tirou ele estava malhado, como estes que vemos na rua. Soltou-o. Quando o pôs no chão, outros quatro saíram de dentro a correr pela casa e se foram. Mexia as mãos como um maestro. E que sinfonia! Vi uma infinidade de armários ao seu redor. Neles, vários potes de azeitonas sem rótulo com um liquido rosado. Um rótulo pela metade dizia ETER. Todos tinham essa escritura. A música pareceu enervar-se de felicidade quando após jogar um pérola na mistura, nasceram dois amores. Uma flor. Única, comprida e avermelhada. Não sei qual era. Com um salto, após a moça ter tirado a planta recém-nascida, sai do parto um cachorro enorme! Quase um cavalo. Mas era cachorro! Só então vi, sua felicidade. Parecia ter retornado à infância a rolar o chão com o animal. Os latidos do bichano e os sorrisos dela saltavam com pingos de luz para todos os lugares. No ar, se transformavam em tudo que existe. Flores, objetos, animais, tudo! Dava vida à vida. Gaia. Com deleites mundanos, experimentava regalias divinas e transformava tudo que tocava em luz, beleza e felicidade. O mundo criou-se, para mim, do sorriso desta moça e da vida de sua flor e seu companheiro de cor marrom, com pêlos espanhóis. Só seu amor era real. Só seu amor era divino e real. Oro por ela, sua força tupiniquim e seus ventos do sul, sempre, de agora em diante.

Que Gaia nos ilumine...
Nordika

Ela andava dançando
Atravessava qualquer um
Inebriava com um assobio comum
As luzes desse encanto

Uma menina
Carregava um lenço
Lançava todos no alento
Tocava tudo com sua varinha

Sorria para destruir exércitos
Distribuía sonhos com beijos
Guardava os planos em seu leito
Me ensinou de certos méritos

Desbravou minha janela uma vez
Contaminou minha casa
Sentou no sofá da sala
Retorceu meu coração, talvez

Meu cachorro me pergunta dela
Por onde anda o vento que iluminou?
Quem era o pássaro que a contemplou?
Às vezes senta comigo ao pé da janela

Tomava leite para ser branca como luz
Tinha olhos coloridos de camaleão
Sabia bem de sua nobre emoção
Ressoava nos esquecidos cantos azuis

Quase a segurei em meu manto aquecido
Ela tomou o rumo do vento
Desfez-se nas árvores que invento
Retornou à casa de palha, o plurido

Mora onde o som não pode chegar
De onde tudo parte
Nem tanto quanto os de Marte
Bem depois de Gibraltar


Que Gaia não nos prive da solidão
Que a Força nos salve o coração...
Insonho antigo

Ela me abateu mais uma vez. A insônia. Há tempos ela não havia de ser tão arrebatadora. Não, não foi ontem. Dormi bem... há dias, ela passou. 11, 12... Não sei, insônia não tem data! Ela vem e atravessa o calendário como um foguete. Transita onde o homem não consegue enquadrá-la.
Ela estava lá. Tão forte em mim, que sentia superar a virtualidade comum até então. Não a insônia. A causa dela... Alguém dividia a dança dos astros, manhã e noite. Ou melhor, os astros do dia e da noite se combinavam para que dividíssemos aquelas pouco mais que outras intenções. Num clichê adolescente, lutávamos com a única arma que tínhamos contra a distância, não tão brutal, mas significativa que se punha entre nós. Ela parecia carregar consigo a mesma voracidade pela ânsia de encontro. Conversávamos como, há pouco, amigos. Pouco desconhecidos, mas de alguma maneira velada, estarrecidos. Um pelo outro, pela novidade, talvez, não sei dizer. Eu estava por ela! É, nos perdíamos ao telefone no meio da noite. E quantos telefone fossem necessários; eles morreriam pela vontade de estar junto. E posso senti-la ainda trêmula, quando certas emoções dominavam nossos órgãos verbais. Eu disse. Enfim disse o que supostamente não se diz numa amizade. Disse do meu interesse, da minha confusão. Disse que mesmo que não quisesse, ou algo impedisse, já a tinha em meu coração. Já, quando perto dela, me faltava a respiração. Disse, ou pelo menos dei a entender. E ela disse! Ela respondeu, ou melhor, ela correspondeu a mim. Ainda posso senti-la enfurecida por dizer que não poderíamos nos sentir assim. Ainda posso...
E como mágica nessa poesia noturna, o dia desvelou a noite. E perguntava: o que fazemos? Já era tarde. Meu sono morrera e minha sede dela, às vezes ainda arde. Como fenecer o corpo com aquela vontade? Impossível. Minha insônia parecia ter me recobrado as forças que perdera há pouco mais que um ano atrás. Me perdi. Naquele amanhecer, me achei! Não dormi, mas acordei. Pudera eu desenhar o gracejo que a pouca luz da praça fazia ao tentar tocar a janela. Não podia ver nada além do céu, que mudava de cor, e de uns pouco livros meus que adormeciam – esses, há muito – no móvel perto da janela, acariciados pela luz fraca que insistia em entrar.
Já não dava mais pra fingir qualquer sanidade. Nos amamos a noite toda como pássaros recém descobertos pelo horizonte. Não havia tantas regras que não fosse nossas vontades. E, portanto, saltei em ousadia ao propor que contemplássemos o nascer do dia. Depois de tudo o que fora dito, tinha que beija-la, tinha que beija-la. E a palidez se apossou do meu rosto quando ela aceitou. “Uma esquina antes da praça”. A indecisão, o pavor, o fervor. Espero, ou vou logo? O que direi? De tanta ânsia, fui perfazendo seu percurso em caminho inverso com desculpa qualquer, apenas para encontra-la logo.
“Por Deus, como ela é linda”, pensei. E a acompanhei gentilmente até nosso ponto de encontro na praça. Aquela altura o dia parecia nublado. E nossos corações ávidos, ensolarados. Meu fulgor irradiava e despudoradamente nos iluminávamos. O dia nascia como que desse a crer numa nova vida, um novo amor. E só o sol para coroar tal emoção, tal junção. Toquei sua mão como se me deleitasse em consentimento completo e me entregasse de peito aberto. O que vi naquele olhar, minhas parcas palavras e meu pobre coração literário nunca poderão tocar. E como a amei aquele dia! Sinto a ausência daquele acalento ainda agora, quando me vejo em solidão e revisito minhas memórias. Me senti encaixar nos seus braços e me encontrar e seus lábios como talvez nunca ousara me arvorar. Nossos medos cabiam no bolso, e tantas árvores pareciam poucas para testemunhar tamanha voracidade minha por ela. Quase esqueci de tudo, do mundo, do jogo, do absurdo. Quase me descolei do chão em leveza, como se fosse encontra-la nas nuvens, como se fossemos dançar ao pé no vento por um dia inteiro, esquecendo de qualquer impedimento físico.
Mas ela foi. Tive de deixa-la ir. Se deixasse, minha paixão me faria casar com ela ali! Tive de deixa-la... Ela disse que sentiria falta na próxima esquina. Eu senti! Como ainda sinto. Por um dia eu amei; por um dia me encontrei; por um dia a insônia me alimentou. Renasci.

Que a Força nos acompanhe...

quarta-feira, agosto 23, 2006


Sobre estar só IV - Do que se almeja maior

Qual será o verdadeiro significado de tantas lágrimas alheias nos desencontros? Por que será de tantas lamúrias ao perceber que é necessário deixar as coisas para trás, que é necessário abrir mão das pessoas; que nem tudo é eterno?
- Sabe? Não consigo entender mais o que ele quer! Só fica com as mesmas fixações de sempre; só pensa nele mesmo e parece que não temos mais graça um pro outro. Não tenho mais segurança de falar as coisas para ele, ele nunca escuta! E quando finalmente estamos chegando à algum lugar ele foge da conversa...

- Foge como?
- Sei lá, muda de assunto ou concorda com tudo só pra acabar o papo. É como se eu estivesse perturbando ele!
- Está?
- Pelo jeito... Enfim, já não temos mais os mesmos gostos; não somos um para o outro! É como se eu não tivesse nada novo, diferente e interessante mais que o despertasse dessa passividade. Não dá. Ele não é mais o mesmo e nossos caminhos já não se conectam mais.
- Mas Cláudia, ele só não quis ir no cinema hoje!
- É, mas isso é só a superfície. Não dá mais. Acabou!


- Ai, não sei! Sinto falta dele. Fico lembrando de quando ele tava aqui do meu lado e antes que eu achasse que estava feia ele passava a mão na minha cabeça por cima da orelha e me segurava como se eu coubesse na palma daquela mão. É difícil sem ele.
- Mas não era pior com ele?
- Eu sei, mas sabe? Sinta falta até de brigar com ele...
- Cláudia, não faz nem dois dias.
- Poisé, mas achamos melhor voltar. A gente se ama, não podemos esquecer disso.

A deprimência de quão volátil as relações podem ser só se equipara à dependência desses seres à certas pessoas ou situações. Pode ser que o campo dessa observação que esteja me limitando, mas é tudo tão precipitado, que num tempo em que “tudo parece não ter lógica, qualquer paranóia (virou) prazer”. A ilusão fantasiosa do romance toma conta das decisões tanto na morbidez do contrato (supostamente) vitalício, quanto na negação dela - encontros tão efêmeros quanto o ir e vir do ar; a supremacia da superficialidade na tentativa cruel de esconder a contraditoriedade latente no homem.
Casais e mais casais com a doença perene de se afogar nos outros. Quando estão juntos não se aturam e quando as coisas tem tudo para ficar bem, o dia-a-dia nos mostra sua faceta cruel: a banalidade.
Entregar-se em uma relação é a única condição de experimentar algo sublime, que nos distancia de nossa mundaneidade: o amor. Só não creio no amor como um discurso barato e consumível. Amor é experiência, e são poucos os que tem a oportunidade de uma entrega tão alimentadora. Estar em companhia não significa estar acompanhado (ou ter acompanhante), muito menos, depender viceralmente de qualquer outro ser. Estar com alguém para se alcançar tal liberdade e criatividade só é possível na medida em que se experimenta uma relação sensata com a solidão. A apropriação dos meios técnicos de comunicação e de experimentação aglutinaram uma série de idéias e idealizações que são programadas em nossas vivências como um elemento usual. A transformação da mensagem literária em elementos visuais exacerbados e discursos de amor marketeiros, disseminam uma vivência relacional que em muito é importada; não nasceu com suas raízes fincadas no quarto de quem a experimenta. Portanto, dada uma – muito mais do que tendência – ordem de comportamento em prol do consumo sutil, não apenas de matéria, bem como um modelo de modo de vida, em muito, nos vejo reproduzindo uma proposta de relação que não necessariamente foi elaborada e vivida nela, foi importada de outra referência.
Assim o amor está em muito ligado a readaptações de idealizações antigas, romantismos encrustrados na necessidade do homem de se descolar da realidade para experimentar conforto qualquer. Se o que rege não é a ânsia pelo conto de fadas, o felizes para sempre, o império do individualismo toma conta de tudo para justificar o egoísmo e o medo de viver a contradição.
A paixão, a excitação, o fulgor, a empolgação, ou qualquer outra coisa são experiências do homem. São fruto de uma forma de exaltação da própria condição de existência de um ser que ainda vive em função de seus medos, seu egocentrismo. Tudo isso não se confunde com o amor. Amor significa, antes de mais nada, reconhecimento da individualidade; bom senso; um caminho para a sabedoria.
Entristece ter de reconhecer que qualquer afã emocional ou qualquer pulsação carnal está associado ao amor. Nos vejo cada vez mais em uma dependência em vez de amor. Confusão coletiva sobre si e muito mais sobre os outros. Pessoas dependentes de “amores” anteriores, que há muito já não constroem nada, e muitas vezes já não são nem mais uma relação, apenas uma idealização.
Todo mundo quer um amor. Mas nem todos encontram algo consistente o suficiente para experimentar tal regalia. Dizia muito a uma amiga que gostar é só o primeiro passo. Relação é trabalho. Estar do lado de outra pessoa é um salto no escuro. A paixão é o que te ferve para a proximidade, que te joga junto a alguém e te faz ter vontade de rodar o mundo para trazer um pedaço de nuvem do sudeste do Tibet só para suscitar um sorriso. É o atrativo. Além dele, tem a estética, o encontro físico sobre o qual não me vejo sensato em falar. Quem não sabe lidar com atração física depois de uma certa idade precisa voltar a assistir Malhação ou qualquer dos moralismos baratos do Manuel Carlos. Amor não. Amor não é espólio da explosão, fulgor... É brado de aclamação. Enaltecimento de algo real, de pé pisado na areia. É mérito de trabalho realizado. Isso não morre. É eterno. Nem com o fim da relação e muito menos com a morte do corpo. É uma experiência que se perpetua. A relação obedece a as contingências do momento, do contexto, o sentimento permanece sempre. Se foi verdadeiro, se foi construído não desaparece. Só se vê assim quem se vê só. Quem já teve que abrir mão do mundo por uma dor e viveu tal empreitada sozinho. Só tem um companheiro quem é companheiro de si antes de mais nada.
Não é o mel que define uma relação. Na verdade, não há relação que permaneça imutável. O ser humano é mutável. Há aqueles que insistem no ostracismo do medo da mudanças, mas pouco vejo neles que seja mais do que medo do novo. O ser humano é inexoravelmente mutável (não me darei em argumentos em favor dessa idéia). O sustentáculo de algo que tem intesões de perdurar não é e nunca será nossas idealizações, nossas ilusões do o outro deveria ser. Um amor só se realiza em na contradição. Uma relação tem que ter sorrisos, mas vejo nos desencontros a oportunidade de reconhecimento verdadeiro. Só através dele que duas pessoas poderão almejar algo. O que constrói algo que almeja ser eterno não é a quantidade de beijos e presentes, o “nível” de paixão ou qualquer pulsação emergente. No dia-a-dia, só o respeito não distancia, o reconhecimento das individualidades. Em uma palavra: tolerância. Talvez se existisse nessa idéia superficial de amor um pouco mais de tolerância as pessoas durariam mais juntas, ou seriam mais profundas juntas.
Só enfrentando o medo de se ver só sem seu alvo de confirmação é possível tatear a solidez segura em meio ao desespero solitário. É necessário casar-se consigo mesmo para entregar-se a outra pessoa. Não se tem a pretensão de que a relação deve ser algo pensado e sensato em absoluto. O homem é espontaneidade e se não alimenta suas dimensões passionais e carnais não creio que poderá almejar algo mais. A questão é alimentar-se de si mesmo, para não perder-se no outro, na relação ou (pior) na pura idealização. Apaixonar-se por si na emoção, no encontro, para não inebriar-se alucinogenamente na ilusão, na fuga do desencontro.
“Não existe amor sem medo. Boa noite”


Que a Força esteja conosco...
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* citações e referências – Djavan e um dos poucos acertos (pra não dizer quase nenhum) do Jota Quest.

Sobre estar só III - A Coragem de ser só e ser coletivo.


Paulo Freire aponta que é apenas em situações limites que o homem busca sua superação. É quando ele se vê circunscrito à uma condição limitadora que alcança as possibilidades de transposição, de crescimento. Qual pode ser o risco de caminhar perto dos limites? Longe de qualquer afã esportista sedento de adrenalina, falo de limites como o da própria convivência. Estar só é um limite. Seja pelo isolamento físico ou o isolamento em si.
Após anos de combates e de ter causado muitas mortes, Miyamoto Musashi se isola, tendo conseguido, ainda vivo, o destaque de maior samurai de todos os tempos. Deste, nasce o livro dos cinco anéis. Código de honra, palavras de sabedoria, antes de mais nada era uma cartilha de como deve se portar um lutador. Impressionante como pode, de um homem sanguinário, partir uma proposta de conduta repleta de valores e cordialidade.
Como não seria diferente com ele, é muito comum encontrar os livros que fazem referência a vida de Musashi. Tem às pencas nas livrarias, com capas coloridas e gráficos contemporâneos. Vejo muitas pessoas o usarem como referência. Hoje é simples comprar um livro e pensar experimentar a vivência de quem o escreveu, sem mesmo arredar o pé do sofá. Não é pouco usual ouvir seu nome em alusão à solidão e à sapiência. É, sim, pouco usual, ver das pessoas que cooptaram sua imagem, uma que realmente caiu no vale da solidão e construiu um aporte próprio com suas mãos.
Quando começou a aperfeiçoar suas técnicas de tae kwon do, já no Japão, Choi Baedal, um coreano imigrante clandestino, recebe o livro dos cinco anéis de seu mestre. Havia começado seu treinamento ainda na Coréia. Após humilhações coletivas, Baedal vive a dor da morte de seu mestre e se isola nas montanhas. O, ainda, rapaz abre mão de tudo, inclusive de um propenso romance, para se redescobrir sozinho, em treinamento isolado, como uma vez o fizera Musashi.
O garoto tem a coragem e a capacidade de se impor uma situação limite como poucos humanos experimentaram – pelo menos no século XX. Seu limite era o condicionamento físico. Baedal estudou o karate como se experimentasse sua origem, vivendo a miséria na floresta. Para terminar de contar os fatos ele desenvolve um estilo de karate chamado kyokshin – ou kyokshinkay – famoso pelo valor ao condicionamento físico e pelo treinamento com touros. Baedal chega a derrubar um touro com um soco em sua cabeça.
É interessante no filme que tenta contar a história de sua vida – Oyama para quem quiser assistir – é que no início ele diz não ter medo de morrer e sim medo de ser um inválido. Um dos ensinamento de seu mestre – coisa que se confirma em Musashi – é que, se ele deseja ser um lutador, deve ser desprendido de qualquer coisa, para não se deixar levar pelo medo de perder nada. Em outras palavras, deve ser absolutamente sozinho, distante das coisas e das pessoas. Meu mestre diz que o verdadeiro sentido da palavra karate, vem desse princípio. “Mãos vazias” significa vazio de espírito, para saber lidar com a ação agressiva sem expectativas. Estar vazio de si mesmo, para se integrar ao outro e, apenas assim, sobreviver à agressão. O que, a meu ver, não significa isolamento absoluto. E este parece ser um aprendizado do personagem. Após ter conhecido pessoas, desenvolvido significado e valor por elas; após ter se apaixonado por uma japonesa, ele redescobre o medo em si. Medo de perder ou qualquer outro. Após a privação de um segundo isolamento, ainda mais humilhante, ele retorna à luta com um significado de vazio não mais de desdém ou despeito. Em sua última luta o oponente pergunta à ele o que fazer com seu corpo após matá-lo, e ele responde que qualquer lugar ao céu está bom – vazio. Para completar refaz a frase do início ao dizer – reconhecendo-se humano – que ele tem medo de morrer, mas tem mais medo de perder tudo ou ficar aleijado.
Mas Oyama, como ficou conhecido depois, descobriu o significado de se unir verdadeiramente às pessoas e se integrar ao mundo. Só ele pode dizer de si, como se mergulhasse em si mesmo. Teve a coragem de se isolar, de retornar ao mundo e se isolar novamente, com humildade, mesmo já sendo um dos maiores lutadores do Japão.
Pudera todos os homens que experimentam a solidão ter a ascendência individual que este ser adquiriu em tão pouco tempo e com tanto esforço e luta. Aprender com a solidão, para realizar-se no mundo, sabendo lidar com o medo que o é peculiar, mas, o mais importante, sem o medo cerceador de si mesmo.


Que a Força esteja conosco...

Sobre estar só II - Medo de ser Feliz

Tentei não me compadecer dela. Tentei não sentir sua dor enquanto amarelava o sorriso à medida que se dava conta de que lembrava dele! Ele quem fosse, era passado, ou pelo menos deveria ser, pela fala dela ao firmar que as coisas estavam já bem resolvidas. “The saddiest girl who ever hold a martini”. Quase senti, como se fosse minha a suposta dor. Ainda disse da necessidade de se ter consciência para ter coragem e da coragem para ter consciência.
Por que é tão duro saber o que fazer e – às vezes mesmo querendo – não conseguir fazer? Foi duro caminhar pelas brumas do isolamento. Tive que aprender a aprender com a solidão “no tranco” como diz meu pai. Quase sucumbi. “Consegui meu equilíbrio cortejando a insanidade”. Tive medos muitos e muitas vezes... Medo de não conseguir ser alguém melhor sozinho, medo de ser sozinho, medo de perder a única possibilidade aparente de companhia verdadeira. Medo de ser feliz. Só sendo só, pode-se haver de tocar gotas de felicidade.
Encontrei na porta do banheiro um lembrete – em tom de ordem – que escrevi para mim mesmo, nessa época: “Aprenda a fechar os ciclos da vida respeitando sua finitude sem cultivar a dor. Ache o lugar do passado na memória e cultive um devir frutivo, de possibilidades renovadoras.”. Preguei atrás da porta pra eu sempre me lembrar de não dar vazão à minha vontade vil de agir como uma criança com medo de morrer quando os pais se distanciam. Com medo de tudo, principalmente das coisas mais absurdas. Precisava ficar só para me desintoxicar de mim mesmo na doença com outra pessoa. O difícil, não foi reconhecer isso. Foi fazer!
Pudera eu ter tido a coragem de reconhecer que precisava de ajuda. Acabei me fortalecendo nas coisas mais improváveis que estavam ao meu redor. As pessoas acabaram me ajudando mesmo sem saber. Só assim pude recobrar forças. Além do medo de perder o mundo estruturado, como tinha dividindo uma vida com uma pessoa – meu passado –, tinha medo de perder meus projetos, meu futuro. Apenas a certeza de que tudo passa me mantinha firme na escolha.
Hoje, não contabilizo meus méritos. Na verdade só posso dizer que aprendi a aprender com a solidão. Não aprendi nada além de que sempre serei só e um grupo, indivíduo e coletividade numa dialética que não se esvai com o tempo. De certo, aprendi que estarei sempre aprendendo, mesmo quando não quiser reconhecer isso. Solidão não é conjuntura, é estrutura, é condição. Ter medo dela é ter medo de si. Hoje, talvez consiga enamorar-me de mim, apesar das incertezas que me acometem.
Outra dor, a dor de outra pessoa, me lembrou a minha. Dor que passou, que é passado. A sinto sempre. Ela existe em fragmentos. Dor que é dor não se esquece, ela sara. Cicatriz não desaparece, marca. Cura, mas marca.


Que a Força esteja conosco...

terça-feira, agosto 22, 2006


Sobre estar só I

“Solidão é bom”, disse ela ao me ver sair do carro. Como se sentisse censurada... Solidão, solitário, sozinho. Surpreende pensar que ela não reconheceria a mim mesmo; minha fuga no que disse agradecendo por ter me salvado da solidão. Afirmou como que defendesse uma idéia e esquecesse de que essa idéia sou eu. Medo vão... Como ousaria eu censurar minha própria condição? Eles me salvaram de mim e minha vertigem metafísica, dos meus refluxos de idéias e sinestesia de sentimentos. Qual fora o cenário aquele dia iria me perder em mim, iria sofrer da minha presença. Salvaram me deixando estar só, acompanhado.
Talvez ainda não tenhamos aprendido a estar só. Todo homem precisa aprender a estar só. Não ouso defender, porém, que isso significa ser solitário, afundado nas profundezas tenebrosas de circunscrever-se no vazio, nas trevas da melancolia, perdido nas ruínas de si mesmo. Denegrir-se em sua própria decadência é passivo de ser feito tanto reservadamente quanto na praça, no bar, na multidão. Não me arvoro em tal despautério. Creio que aprender a lidar consigo é chave para conseguir lidar com os outros e, principalmente, com o outro, em uma relação mais profunda. Quem não sabe abrir mão do outro pra si, não aprende a abrir mão de si para o outro. E quem não acredita que no esforço de se caminhar nesse mar, seja necessário abrir mão de algo, pare. Não leia mais. Abro mão de você.
“Os dias que eu me vejo só, são dias que eu me encontro mais (...)”, disse o Amarante. Nem sempre – já não vejo mais a vida numa linha ou numa homogeneidade generalizadora – minha atitudes mundanas refletem ou se revelam nesta verdade, mas é isso que busco. Não fujo da solidão. Como o próprio Milton Santos certa vez firmou, “como intelectual, tenho que me habituar a estar sozinho. Não tenho que me preocupar com quem me acompanha. (...) É a posição das idéias, a coragem de defendê-las até o fim”. Reconhecer a condição de estar à margem, é reconhecer-se só.
É coercitivo introjetar que amigo não é muleta e nem toda mulher é mãe – ou nenhuma mulher é absolutamente mãe. Reconhecer-se um ser social, não é aprisionar o bem estar ao convívio de alguns, viciar-se na fuga de si nos outros. Estar ou ser solitário é ser solidário de si mesmo, acompanhar-se para se deixar acompanhar pelo mundo. Salvaguardando dos extremismos, não há nesta proposta nenhum quê leviano de individualismo. Não é próprio do que está sendo dito, furtar-se do mundo, projetar num universo onde só o que existe é uma pessoa – de onde tudo começa e para onde tudo parte – e o resto são apenas “6 bilhões de figurantes”. Se assim o fosse o mundo seria pequeno demais para lutarmos por ele.
Andar... Do japonês “DO” é caminho. Mas como quase tudo que vem da região do sol nascente, a palavra não é apenas uma palavra. O caminho só existe na condição de caminhante, andarilho. O espaço fixo, subentende uma ação que precede sua própria existência. Somos andantes... Ser humano é ser andante. É necessário ter consciência disso – de si no mundo – para a transformação. Marx falava da consciência de classe. Pierre Weil alerta da ilusão da separatividade. O próprio Cappra fala da crise de percepção. A ação coletiva se dá o direito de usurpar-nos o direito de assumirmo-nos, de ter consciência de si. “O tempo há de ver que as horas são curtas demais pra achar um lugar no mundo”. É a luta. Criar-nos em diferença no meio da semelhança mórbida. É necessário ter ciência disso.
Talvez fosse melhor dizer, “ter sapiência disso”, na medida em que “isso” não é um idéia, é uma experiência. Só quem pisa o pé no caminho pode abarcá-la. Quem ousa deixar sua marca na história, sua pegada na areia. Não creio que o coletivo seja condição determinista. O coletivo, o grupo, tem que ser construção senão é conformismo ou domesticação. Só quem anda “um caminho só” pode lançar-se no luxo de dar a mão, de dividir um coração.
E o “DO”? Penso na trajetória humana como um caminho contraditório, mas integrador de opostos. Somos medo e desejo, silêncio e som. No que nos move, somos sonho e trabalho. Sonho, o que exalta e emerge como força, o que lança o olhar aos céus e almeja algo maior que nossa pequenitude bela. O sol que ilumina e orienta; que lança o mortal às nuvens e o deixa leve como o vento para soprar o firmamento. Trabalho que concretiza, que faz nascer o que se projeta. O ato, a ação, o pisar na areia, o amor e a dor do contato com o chão, que marca ambos – quem pisa e o pisado – e suplementa a sustentação para transpor os acidentes do relevo. A verdadeira força que risca o chão pelo simples fato de ser ação.
A essência desse esforço é saber dar a mão nos tropeços. A vida não é minha, ela paira... Portanto, DO é uma caminhada coletiva. São passos. “Quem não tem pra quem de dar o dia é igual a noite”. Encontrar-se, desencontrar-se nos passos que rodeiam é tarefa de glória que só se experimenta se se vive. “Se se”? Se-condição e se-pronome. A condição de ser pronome, de ser si mesmo no vale da perdição humana; na beleza da solidão humana.


Que a Força esteja conosco...

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* - citações e referências: Amarante (primeiro andar e condicional), Milton Santos, Lenine, Karl Marx, Pierre Weil, Fritjov Cappra, Lulu Santos e Paulinho Moska.


De volta às tensões contraditórias da realidade banal, mundana
Recobrando as forças da fragilidade humana
Aos pouco voltando a ser
Fingindo ser
Fugindo do que é
do que devería ser
Minhas inquietações escritas retornam
Nunca morreram
Mas reacordam das brumas esquecidas do confinamento efermo de minha casa
Cá estou mais uma vez
Pra dividir, realizar talvez
O que cintila ofuscantemente nessa cabeça
O que me faz eu
Ou que faz com o que sou
Com que pareça
E talvez eu pereça...
Não sei
Ora em sorrisos
Ora e lágrimas
Cabeças
Corações
Em encontros e desencontros
De esperanças e frustrações

Andando novamente, que a Força nos acompanhe...