terça-feira, agosto 22, 2006


Sobre estar só I

“Solidão é bom”, disse ela ao me ver sair do carro. Como se sentisse censurada... Solidão, solitário, sozinho. Surpreende pensar que ela não reconheceria a mim mesmo; minha fuga no que disse agradecendo por ter me salvado da solidão. Afirmou como que defendesse uma idéia e esquecesse de que essa idéia sou eu. Medo vão... Como ousaria eu censurar minha própria condição? Eles me salvaram de mim e minha vertigem metafísica, dos meus refluxos de idéias e sinestesia de sentimentos. Qual fora o cenário aquele dia iria me perder em mim, iria sofrer da minha presença. Salvaram me deixando estar só, acompanhado.
Talvez ainda não tenhamos aprendido a estar só. Todo homem precisa aprender a estar só. Não ouso defender, porém, que isso significa ser solitário, afundado nas profundezas tenebrosas de circunscrever-se no vazio, nas trevas da melancolia, perdido nas ruínas de si mesmo. Denegrir-se em sua própria decadência é passivo de ser feito tanto reservadamente quanto na praça, no bar, na multidão. Não me arvoro em tal despautério. Creio que aprender a lidar consigo é chave para conseguir lidar com os outros e, principalmente, com o outro, em uma relação mais profunda. Quem não sabe abrir mão do outro pra si, não aprende a abrir mão de si para o outro. E quem não acredita que no esforço de se caminhar nesse mar, seja necessário abrir mão de algo, pare. Não leia mais. Abro mão de você.
“Os dias que eu me vejo só, são dias que eu me encontro mais (...)”, disse o Amarante. Nem sempre – já não vejo mais a vida numa linha ou numa homogeneidade generalizadora – minha atitudes mundanas refletem ou se revelam nesta verdade, mas é isso que busco. Não fujo da solidão. Como o próprio Milton Santos certa vez firmou, “como intelectual, tenho que me habituar a estar sozinho. Não tenho que me preocupar com quem me acompanha. (...) É a posição das idéias, a coragem de defendê-las até o fim”. Reconhecer a condição de estar à margem, é reconhecer-se só.
É coercitivo introjetar que amigo não é muleta e nem toda mulher é mãe – ou nenhuma mulher é absolutamente mãe. Reconhecer-se um ser social, não é aprisionar o bem estar ao convívio de alguns, viciar-se na fuga de si nos outros. Estar ou ser solitário é ser solidário de si mesmo, acompanhar-se para se deixar acompanhar pelo mundo. Salvaguardando dos extremismos, não há nesta proposta nenhum quê leviano de individualismo. Não é próprio do que está sendo dito, furtar-se do mundo, projetar num universo onde só o que existe é uma pessoa – de onde tudo começa e para onde tudo parte – e o resto são apenas “6 bilhões de figurantes”. Se assim o fosse o mundo seria pequeno demais para lutarmos por ele.
Andar... Do japonês “DO” é caminho. Mas como quase tudo que vem da região do sol nascente, a palavra não é apenas uma palavra. O caminho só existe na condição de caminhante, andarilho. O espaço fixo, subentende uma ação que precede sua própria existência. Somos andantes... Ser humano é ser andante. É necessário ter consciência disso – de si no mundo – para a transformação. Marx falava da consciência de classe. Pierre Weil alerta da ilusão da separatividade. O próprio Cappra fala da crise de percepção. A ação coletiva se dá o direito de usurpar-nos o direito de assumirmo-nos, de ter consciência de si. “O tempo há de ver que as horas são curtas demais pra achar um lugar no mundo”. É a luta. Criar-nos em diferença no meio da semelhança mórbida. É necessário ter ciência disso.
Talvez fosse melhor dizer, “ter sapiência disso”, na medida em que “isso” não é um idéia, é uma experiência. Só quem pisa o pé no caminho pode abarcá-la. Quem ousa deixar sua marca na história, sua pegada na areia. Não creio que o coletivo seja condição determinista. O coletivo, o grupo, tem que ser construção senão é conformismo ou domesticação. Só quem anda “um caminho só” pode lançar-se no luxo de dar a mão, de dividir um coração.
E o “DO”? Penso na trajetória humana como um caminho contraditório, mas integrador de opostos. Somos medo e desejo, silêncio e som. No que nos move, somos sonho e trabalho. Sonho, o que exalta e emerge como força, o que lança o olhar aos céus e almeja algo maior que nossa pequenitude bela. O sol que ilumina e orienta; que lança o mortal às nuvens e o deixa leve como o vento para soprar o firmamento. Trabalho que concretiza, que faz nascer o que se projeta. O ato, a ação, o pisar na areia, o amor e a dor do contato com o chão, que marca ambos – quem pisa e o pisado – e suplementa a sustentação para transpor os acidentes do relevo. A verdadeira força que risca o chão pelo simples fato de ser ação.
A essência desse esforço é saber dar a mão nos tropeços. A vida não é minha, ela paira... Portanto, DO é uma caminhada coletiva. São passos. “Quem não tem pra quem de dar o dia é igual a noite”. Encontrar-se, desencontrar-se nos passos que rodeiam é tarefa de glória que só se experimenta se se vive. “Se se”? Se-condição e se-pronome. A condição de ser pronome, de ser si mesmo no vale da perdição humana; na beleza da solidão humana.


Que a Força esteja conosco...

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* - citações e referências: Amarante (primeiro andar e condicional), Milton Santos, Lenine, Karl Marx, Pierre Weil, Fritjov Cappra, Lulu Santos e Paulinho Moska.

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Não sei porque sempre que eu leio esse texto, te ouço gritando cada palavra....

Estranho isso. Não és de gritar. Não em voz alta.

Sobre estar só, eu já soube. Novamente, desaprendi.

22 agosto, 2006 22:55  

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