quarta-feira, agosto 23, 2006


Sobre estar só III - A Coragem de ser só e ser coletivo.


Paulo Freire aponta que é apenas em situações limites que o homem busca sua superação. É quando ele se vê circunscrito à uma condição limitadora que alcança as possibilidades de transposição, de crescimento. Qual pode ser o risco de caminhar perto dos limites? Longe de qualquer afã esportista sedento de adrenalina, falo de limites como o da própria convivência. Estar só é um limite. Seja pelo isolamento físico ou o isolamento em si.
Após anos de combates e de ter causado muitas mortes, Miyamoto Musashi se isola, tendo conseguido, ainda vivo, o destaque de maior samurai de todos os tempos. Deste, nasce o livro dos cinco anéis. Código de honra, palavras de sabedoria, antes de mais nada era uma cartilha de como deve se portar um lutador. Impressionante como pode, de um homem sanguinário, partir uma proposta de conduta repleta de valores e cordialidade.
Como não seria diferente com ele, é muito comum encontrar os livros que fazem referência a vida de Musashi. Tem às pencas nas livrarias, com capas coloridas e gráficos contemporâneos. Vejo muitas pessoas o usarem como referência. Hoje é simples comprar um livro e pensar experimentar a vivência de quem o escreveu, sem mesmo arredar o pé do sofá. Não é pouco usual ouvir seu nome em alusão à solidão e à sapiência. É, sim, pouco usual, ver das pessoas que cooptaram sua imagem, uma que realmente caiu no vale da solidão e construiu um aporte próprio com suas mãos.
Quando começou a aperfeiçoar suas técnicas de tae kwon do, já no Japão, Choi Baedal, um coreano imigrante clandestino, recebe o livro dos cinco anéis de seu mestre. Havia começado seu treinamento ainda na Coréia. Após humilhações coletivas, Baedal vive a dor da morte de seu mestre e se isola nas montanhas. O, ainda, rapaz abre mão de tudo, inclusive de um propenso romance, para se redescobrir sozinho, em treinamento isolado, como uma vez o fizera Musashi.
O garoto tem a coragem e a capacidade de se impor uma situação limite como poucos humanos experimentaram – pelo menos no século XX. Seu limite era o condicionamento físico. Baedal estudou o karate como se experimentasse sua origem, vivendo a miséria na floresta. Para terminar de contar os fatos ele desenvolve um estilo de karate chamado kyokshin – ou kyokshinkay – famoso pelo valor ao condicionamento físico e pelo treinamento com touros. Baedal chega a derrubar um touro com um soco em sua cabeça.
É interessante no filme que tenta contar a história de sua vida – Oyama para quem quiser assistir – é que no início ele diz não ter medo de morrer e sim medo de ser um inválido. Um dos ensinamento de seu mestre – coisa que se confirma em Musashi – é que, se ele deseja ser um lutador, deve ser desprendido de qualquer coisa, para não se deixar levar pelo medo de perder nada. Em outras palavras, deve ser absolutamente sozinho, distante das coisas e das pessoas. Meu mestre diz que o verdadeiro sentido da palavra karate, vem desse princípio. “Mãos vazias” significa vazio de espírito, para saber lidar com a ação agressiva sem expectativas. Estar vazio de si mesmo, para se integrar ao outro e, apenas assim, sobreviver à agressão. O que, a meu ver, não significa isolamento absoluto. E este parece ser um aprendizado do personagem. Após ter conhecido pessoas, desenvolvido significado e valor por elas; após ter se apaixonado por uma japonesa, ele redescobre o medo em si. Medo de perder ou qualquer outro. Após a privação de um segundo isolamento, ainda mais humilhante, ele retorna à luta com um significado de vazio não mais de desdém ou despeito. Em sua última luta o oponente pergunta à ele o que fazer com seu corpo após matá-lo, e ele responde que qualquer lugar ao céu está bom – vazio. Para completar refaz a frase do início ao dizer – reconhecendo-se humano – que ele tem medo de morrer, mas tem mais medo de perder tudo ou ficar aleijado.
Mas Oyama, como ficou conhecido depois, descobriu o significado de se unir verdadeiramente às pessoas e se integrar ao mundo. Só ele pode dizer de si, como se mergulhasse em si mesmo. Teve a coragem de se isolar, de retornar ao mundo e se isolar novamente, com humildade, mesmo já sendo um dos maiores lutadores do Japão.
Pudera todos os homens que experimentam a solidão ter a ascendência individual que este ser adquiriu em tão pouco tempo e com tanto esforço e luta. Aprender com a solidão, para realizar-se no mundo, sabendo lidar com o medo que o é peculiar, mas, o mais importante, sem o medo cerceador de si mesmo.


Que a Força esteja conosco...