Sobre Recordar
Há algo no ato de lembrar que é sempre fazer-se lembrar. Há quem diga que só tem memória quem vive dela; ou mesmo, que quem vive de lembrança, o faz porque não vive, está sempre no passado, estando vazio e ôco no presente. Não sei, não tenho certeza... E se certezas busco para escolher as palavras, a maior de todas é que a memória em si, precede a escolha racional dela, ou a conjuração de elementos pra povoar o suposto baú de lembranças. Só de viver, se muda o presente e marca-se a cognição do passado pela imaginação...
Parede, baú, álbum, diário, qualquer que seja o monumento que se constrói para retornar às figurações do passado, não são elas maiores que a própria experiência em si. O momento que passou nunca retorna, e as aspirações do homem só o colocam no reencontro consecutivo com suas próprias noções dos fatos. São novos sorrisos, novas lágrimas do agora de um olhar sobre o mosaico de imagens que se reencontram na lembrança. Chuvas, sóis, praia, aquela esquina, a cama, o copo, o corpo, o cheiro, uma janela que às pressas jogam o hoje numa viagem para um hoje outro, que não é passado nem futuro... É simplesmente um uivo da história que cutuca o coração.
De novo do Livro dos Abraços, ontem eu li Galeano dizer que “recordar: do latim re-cordis, (é) voltar a passar pelo coração”. Quando estamos demasiado saudosos, o coração se infla, porque tornamos a atravessá-lo com tão carinhosas cenas, tão fortes cheiros e acontecidos de outrora que clamam por ser um hoje inalcançável. E por inatingível, alimenta-se os passos das lágrimas que pegam a senha pra saltar no precipício do rosto e perder-se na emoção.
A saudade me atravessa o peito muitas vezes de menos cuidadosa com as vontades do hoje. Hoje, ela me atravessou não como antes, ardosa e ferina. Pela primeira vez em tempos, ela veio carinhosa, como se abraçasse qualquer mágoa por um segundo, como um bebê indefeso que pára de chorar no colo-acalanto. Me arrancou saudade, o que já não tem mais idade pra ser, sendo bem mais que aquele rancor, e me abriu portas... Me abriu novas portas para guardar o passado no passado. E por todo sorriso que há de vir, reconhecer a fragilidade do sentimento humano que pulsa neste peito.
E ela passa... Como mágica, passeia alada no céu. Lá... Bem longe, onde já não é mais a mesma; onde não existe mais, onde não é mais hoje, nem ontem...
Só volta a passar pelo coração... Como quem vira o tronco, olha pra trás, deixa o sorriso e segue pelo inexorável.